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A origem sangrenta dos Contos de Fadas, por Renata Pletz

Dentre as questões que permeiam o universo do imaginário infantil, recebem, sem dúvida, merecido destaque, os contos de fadas. Eles estão...

Dentre as questões que permeiam o universo do imaginário infantil, recebem, sem dúvida, merecido destaque, os contos de fadas. Eles estão entre as primeiras histórias que conhecemos na infância, que com sua magia, lançam sobre nós um encantamento inesquecível, capaz de durar a vida toda. Todos terminam com a frase “e viveram felizes para sempre”, na qual acreditamos piamente. Seu otimismo, a constante vitória dos bons sobre os maus, o triunfo dos humildes sobre os orgulhosos, nos infundem esperança.

No entanto, os contos de fadas são muito mais que a realização das nossas fantasias e vão para muito mais além. Ao cruzar a fronteira do “era uma vez...”, entramos num mundo em que, como nos sonhos, a realidade se transforma.  O mundo real raramente é justo, mas nos contos de fadas quase sempre há generosas recompensas para os bons e severos castigos para os maus.

Esses clássicos possuem traços que remetem aos primórdios da humanidade, quando os homens sentavam-se ao redor do fogo para contar suas histórias, mas foi com o escritor francês Charles Perrault, no século XVII, que se inauguraram as bases deste novo gênero que faria história entre as histórias, a partir da publicação, em 1697, de Histórias, ou contos de tempos passados. A referida obra compõe-se de oito histórias tradicionais e entre elas figuram “Cinderela”, “A Bela Adormecida”, “Chapeuzinho Vermelho”, “O Gato de Botas” e “Barba Azul”

No posfácio de recente edição de Contos e Fábulas de Perrault, seu tradutor Mário Laranjeira ressalta a importância do pioneirismo de Perrault:

“[ ...] essas histórias têm origem  numa tradição imemorável e são o que se costuma chamar de criação coletiva. Sua matéria é, em grande parte, retirada de velhas histórias orientais ou medievais, e Charles Perrault começou por contá-las a seus filhos. Depois elas serviram de tema a suas publicações. É dele, pois, o mérito de ter dado ao repertório da Mãe Gansa a sua existência literária. Mas faz parte da essência dos contos populares não pertencerem a ninguém em particular.”

Jacob e Wilhelm Grimm, que também foram linguistas, filólogos e folcloristas, recolhendo material folclórico diretamente da memória popular, das lendas e sagas germânicas, na intenção de buscar as origens da realidade histórica “nacional”, publicam entre os anos de 1812 e 1822 grande produção, resultando no volume Contos de fadas para crianças e adultos ( Kinder-und Hausmärchen).  Algumas destas narrativas constam também na recolha realizada por Perrault, na França, a que prova a existência de uma fonte comum.

Diferentemente dos contos de fadas amenizados e edulcorados, adequados às produções cinematográficas que hoje os pequenos conhecem, principalmente a partir dos anos 30 do século XX, com Walt Disney, essas histórias – em sua maioria recolhidas e adaptadas do folclore – tiveram, ao longo dos séculos, modificações no sentido de suavizar a violência e minimizar o substrato sexual das narrativas originais.

Nas sucessivas reedições da obra dos irmãos Grimm, a própria dupla tratou de amenizar as passagens que julgavam mais brutais ou até mesmo picantes. Em pelo menos um caso célebre, a dupla suavizou uma história já publicada por Perrault: Chapeuzinho Vermelho. Na versão de Perrault, avó e menina eram devoradas, e o escritor salientava a moral da história, onde as crianças não devem falar com estranhos, para não virar comida de lobo. A dupla acrescentou a inventada figura do caçador, que aparece no final da trama e salva a pele de Chapeuzinho e da vovó, abrindo a barriga do lobo com uma tesoura.

Muitos desfechos, com o passar dos anos, acabaram caindo no lugar comum. Como aquele antológico beijo no sapo que, como se em um passe de mágica, faz com que a criatura asquerosa transforme-se em um belo príncipe que até então sofria os encantamentos de uma bruxa malvada. Originalmente, a história não era bem assim. Na versão dos irmãos Grimm, a mimada filha do rei, ao invés de dar-lhe o famoso beijo que o aprisionava na maldição do feitiço, joga-o violentamente na parede a fim de matá-lo e livrar-se dos caprichos do sapo aos quais era submetida como dívida de gratidão, pois tendo sangue azul, jamais poderia deixar de honrar um compromisso assumido. O bicho havia resgatado sua bola de ouro no fundo do poço. Agora, em troca, deveria fazer tudo o que a nojenta criatura determinasse, inclusive levá-la para seu quarto.

Na famosa versão de Cinderela, os Grimm trazem à cena mutilações, quando as irmãs invejosas cortam partes dos próprios pés para que o famoso sapatinho de cristal lhes caiba,  e a morte dramática da madrasta da borralheira e suas filhas tendo os olhos devorados por pombos.
No clássico Branca de Neve, de 1810, aparece o canibalismo, quando a própria mãe, e não a madrasta, enlouquecida de ciúmes diante à beleza da filha de apenas sete anos, ordena ao caçador que mate a própria filha e traga-lhe o fígado e os pulmões como prova. O caçador, com pena da criança, entrega-lhe as vísceras de um javali, que a mãe come, pensando ser da menina.

Como a maioria dos contos de fadas surgiu na Idade Média, em rodas de camponeses, onde eram narrados para toda família, a fome e a mortalidade infantil serviam de inspiração, o que nos faz compreender a presença de criaturas horrendas, vindas do imaginário popular, e da temática que envolve violência e morte, o que para nossa concepção contemporânea de infância, pode causar certo estranhamento.

À medida que os anos foram passando e a sociedade evoluindo no que se refere ao entendimento das especificidades das crianças, os contos de fadas também foram modificando-se, sendo, inclusive, interpretados sob a ótica da psicanálise, que encontra na Literatura Infantil uma alternativa para senão a solução, ao menos o tratamento de alguns conflitos e até mesmo transtornos dos pequenos.

Bruno Bettelheim, partindo do receio dos pais e educadores à cerca da crueldade e falta de verdade dos contos de fadas, que por muitos foram acusados sob a alegação de irreais e selvagens, afirma-nos que:

"Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura, dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação, e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvolver ainda mais o seu caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade _ mas apenas se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as quais nunca se adquire verdadeira identidade. Estas estórias prometem à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os poderes benevolentes virão em sua ajuda e ela os conseguirá. As estórias também advertem que os muito temerosos e de mente medíocre, que não se arriscam a se encontrar, devem se estabelecer numa existência monótona _ se um destino ainda pior não recair sobre eles.” ( Bettelheim, 1980, pág. 32)

Podemos constatar, por conseguinte, que os contos de fadas adaptaram-se através das sucessivas gerações e das mudanças dos olhares sob a infância, devendo ser difundidos, quer na literatura oral, quer na impressa, e consagrados sob os mais diversos aspectos no que concerne ao enriquecimento da formação de nossos pequenos e, acima de tudo, lidos e relidos incansavelmente para que continuem entretendo, ensinando e remodelando-se como prova de que acompanham a evolução da sociedade.



Fonte: Blog da Comissão Gaúcha de Folclore

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