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O caráter fechado da música gaúcha como ponto de partida para a cumbia

Matungo acaba de lançar “Cumbia A Lo Mestizo", fruto de sua raiz na música gaúcha com sua pesquisa sobre a música latina - Foto: Di...

Matungo acaba de lançar “Cumbia A Lo Mestizo", fruto de sua raiz na música gaúcha com sua pesquisa sobre a música latina - Foto: Divulgação


“A música gaúcha se torna intragável para qualquer pessoa mais esclarecida”, declarou Nei Lisboa em 2010, em uma entrevista até hoje rememorada toda vez que o caráter fechado e muitas vezes reacionário da música tradicionalista do Rio Grande do Sul é colocado em discussão.

Por Carlos Viegas*

Com sua fala, o cantor do Bom Fim criticava um gênero onde as mestiçagens são regradas (proibidas, para ser mais exato) por instituições bastante conservadoras que veem no câmbio cultural um sinal de impureza. Este câmbio muitas vezes coibido e até a própria ideia de pureza cultural são o núcleo do trabalho solo de Matungo (codinome de Vandré La Cruz, ex-vocalista da banda Bombo Larai), que lançou recentemente o clipe de “Cumbia A Lo Mestizo”. Segundo o próprio artista, uma tentativa de respeitar a tradição sem necessariamente mantê-la intacta ou enxergá-la como algo sacro, “remexendo nas raízes para criar algo novo”.

“Quanto mais mistura, mais pode crescer”, diz a letra da canção. Esse pensamento já não é novidade desde pelo menos a Semana de Arte Moderna de 1922. No Rio Grande do Sul, no entanto, ainda é uma ideia a ser pautada. “A ação bem sucedida do MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho, criticada entidade cívica criada para preservar a cultura local) em regrar a produção artística crioula formou conceitos sobre a música nativista que acabaram por deixar o Rio Grande do Sul um passo atrás na aventura que é a mestiçagem musical”, diz Matungo.

O artista lembra a ação de nomes como Bataclã FC, Ultramen e Bebeto Alves, que beberam da música nativa para criar novos caminhos, mas destaca que essas produções que buscaram inovar nunca foram incorporadas pela tradição rígida que se manteve intacta, enquanto “no norte e no nordeste brasileiros, do rock ao pop, a mestiçagem musical correu solta, de Nação Zumbi à Gaby Amarantos”, chegando ao mainstream, atualizando as tradições e comovendo as camadas populares.

Uma instituição do pode e do deve

O MTG é um conglomerado de mais de 1700 centros de tradições espalhados pelo Rio Grande do Sul e, ao menos desde 1966, trabalha na preservação do patrimônio cultural do estado. O trabalho destes diferentes agentes espalhados pelo território gaúcho desembocou em diversos resultados em longo prazo. O mais visível e benéfico deles foi a própria preservação do tal patrimônio. Ironicamente, o mais prejudicial dos efeitos foi também a própria preservação.

Dentro deste contexto, é histórica a rusga da entidade com a Tchê Music (leva de bandas que surgiram no tradicionalismo e que incorporaram elementos da música pop), por exemplo. Um editorial publicado no auge do movimento e assinado por Manoelito Carlos Savaris criticava desde a postura dos músicos sobre o palco até a inclusão de temáticas e instrumentos “alienígenas”, desencorajando as casas tradicionais de música gaúcha a contratarem tais músicos para apresentações em seus domínios.

“Os conjuntos musicais que enveredam por este caminho novo se submetem a um bem planejado esquema de marketing, não se importando em misturar ritmos autênticos gaúchos com outros que nada têm de tradicionais, assim como não vêem problemas em se apresentar usando uma vestimenta onde a bombacha vira calça larga (…). O comportamento no palco nada tem de discreto, muito menos de tradicional. A rigor, não há diferença entre os ‘tchê’ e os grupos da lambada, do frevo ou do rock, todas manifestações respeitáveis e típicas de outras paragens. O CTG que necessitar fazer a contratação de conjunto musical que distorça a música, que despreze a pilcha ou que use de recursos próprios de culturas alienígenas para obter lucro deve pensar se não está na hora de trocar de nome e de finalidade”. Manoelito Carlos Savaris, vice-presidente do MTG à época em editorial sobre a Tchê Music.

A mesma postura patronal se repetiu em diversos outros casos, personalizada em diferentes lideranças da entidade que se sentiram à vontade no papel de curadores da música regional, sempre com o objetivo de evitar novas influências e preservar uma pureza que nunca ficou bem estabelecida e muitas vezes resvala na “simples” xenofobia. “A música começou a ser tutelada até em termos do que vestir e não vestir em cima do palco”, comentou Nei Lisboa naquela entrevista tão famosa. “Qualquer adolescente urbano medianamente esclarecido, hoje em dia, se coloca a quilômetros de distância disso”.

As críticas não encontram por parte da entidade respostas muito satisfatórias. Defensores da cultura no estado garantem que a música tradicionalista é muito mais plural do que se pensa e que as críticas são típicas de quem não acompanha o processo tradicionalista de perto. As manifestações oficiais do MTG, no entanto, reforçam a ideia de uma instituição que toma para si o papel de dona de um gênero (algo raramente visto mundo afora), embora busque formas brandas de comunicar isso ao grande público.

“Cabe esclarecer que o MTG não é a ‘sociedade do não pode’. É, isto sim, a sociedade do pode e do deve: as pessoas e as entidades tradicionalistas podem fazer tudo o que estiver adequado à tradição e ao folclore gaúcho e devem seguir as regras espontâneas, fruto da história de uma sociedade que se formou a partir da ocupação de um território cuja única riqueza eram os seus vastos e desabitados campos, onde os bovinos e equinos, trazidos pelos jesuítas, proliferaram espantosamente entre meados do século 17 e início do século 19”. Manoelito Carlos Savaris, em Uma Instituição do Pode e Do Deve.

A manifestação do dirigente é ingênua em vários pontos, nota-se logo em primeira vista. Primeiro, porque, ao dizer o que se pode e o que se deve fazer, obviamente se opera proibições e censuras. Segundo, porque o ideal de um gaúcho ligado à lida do campo nem de longe representa o habitante do Rio Grande do Sul de qualquer época, servindo apenas para ignorar fatias sociais que não se dedicaram à agropecuária por serem excluídos por questões econômicas ou mesmo de raça e de gênero ao longo da história. O discurso muitas vezes cola, infelizmente, ainda mais em tempos de extremismo onde até os Estados Unidos fecham as suas fronteiras.

A cumbia como possibilidade

Matungo, que desde cedo se incomodou com a inflexibilidade da música que o cercava, foi catar na América Latina as referências que julgava úteis à atividade de atualizar aquela música dita como tradicional e intocável. Encontrou na cumbia uma possibilidade tão harmônica quanto transgressora.

“No Chile uma leva de ex-integrantes de bandas de rock e reggae formaram bandas de cumbia dando origem a um novo movimento hoje aclamado e chamado como La Nueva Cumbia Chilena. Uma espécie de cumbia-reggae com nuances de rock e ska. Na Argentina, medalhões do rock nacional, como o Bersuit Vergarabat, alternaram guitarras distorcidas com timbales e cowbells típicos do ritmo nativo. Los Fabuloso Cadillacs e até o unânime Leon Gieco, uma das vozes mais aclamadas do continente, andou surfando no compasso cumbiambero. No Uruguai, Cuatro Pesos de Propina e uma das bandas mais antigas de rock mestizo da América Latina, Abuela Coca, também vão por este caminho. Na Colômbia, onde a fusão tende a ser mais forte com a música eletrônica, há outra infinidade de artistas interessantes, como Bomba Estéreo, La Mojarra Elétrica, Systema Solar, entre muitos”, apresenta Matungo

Com esta constelação de influências externas somada ao que ele já havia interiorizado da música que havia por perto (por mais quadrada que esta fosse), Matungo estruturou o seu projeto solo que já está gravado em disco – produzido por argentinos.

“Para se alcançar uma sonoridade mestiça é preciso misturar. Na América do Sul, talvez seja Buenos Aires a cidade com a cena independente mais consolidada nesse sentido. Karamelo Santo, Las Manos de Fillipi, as extintas Avanti Esperanza e Sonora Insurgente, agora juntas em El Sonidero y Fanfarria Insurgente, são algumas das bandas que circulam muito bem por lá. Marcos Rodriguez e Marcelo Zalazar (os produtores do disco), além de produtores, são músicos totalmente integrados ao mundo onde eu pretendia mergulhar”, esclarece o músico.

O projeto começou no ano passado e muito do que se desenrolou aconteceu à distância, através de e-mails e mensagens trocadas diariamente. Quando os rumos da obra já estavam definidos, Matungo foi à capital argentina gravar as canções. O disco, que contará com participações de Walter Chamorro (Mambo Negro), Aypo Rodriguez (Pura Vida) e Fede Vazquez (Rusca e El Sonidero), deverá ser lançado em breve, ainda sem data definida. “O resultado foi acima do esperado”, contou o músico gaúcho. “O disco alcançou uma sonoridade ímpar que eu dificilmente teria conseguido com uma produção local, até pela experiência e a proximidade dos músicos e produtores com aquilo que se buscava com o projeto. Além disso, tudo manteve a brasilidade inevitável em Matungo”.

Trabalho feito, agora é lançar e esperar que os envolvidos se manifestem. Nuvens no horizonte, com sinais de tormenta, anunciam que algum editorial institucional deve surgir assim que o clipe de “Cumbia A Lo Mestizo” alcançar uma quantidade considerável de visualizações. Resta torcer para que as fissuras ajudem a abrir algumas portas que há muito tempo estão fechadas. Neste caso, que venham as manifestações de todo lado. Quanto mais barulho e mais cumbia, melhor.

Assista ao clipe:


*Carlos Viegas é publicitário e pesquisador, mestrando em ciências da comunicação


Fonte: portal Vermelho

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