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"Os charruas vivem" nos Gaúchos: a vida social de uma pesquisa de "resgate" genético de uma etnia indígena extinta no Sul do Brasil

Este artigo explora a articulação entre uma pesquisa de ancestralidade genética e a construção social de identidades étnicas no Rio Gran...



Este artigo explora a articulação entre uma pesquisa de ancestralidade genética e a construção social de identidades étnicas no Rio Grande do Sul. Isso é feito através da análise da vida social de um projeto de pesquisa conduzido por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tal investigação estabeleceu a continuidade genética entre a população Gaúcha contemporânea e os presumidamente extintos Charrua, uma etnia indígena que vivia na região do Pampa do estado. Ao longo do desenvolvimento do projeto de pesquisa, a ideia de continuidade genética passou por diferentes configurações, a depender de contextos específicos, sendo afirmada com diferentes níveis de certeza. A presente análise enfoca as condições sociais e genéticas que possibilitaram o estabelecimento de tal continuidade, assim como a afirmação da especificidade genética dos Gaúchos. Finalmente, são explorados os impactos sociais dessa pesquisa, em particular as suas articulações com construções de uma identidade regional diferenciada.

Palavras-chave: Charrua, Gaúchos, genética, políticas de identidade.


Introdução

"Os charruas vivem", afirmou o dramático título de uma matéria de página inteira publicada em agosto de 2003 no jornal Zero Hora, de Porto Alegre (Figura 1) (Werb, 2003).1 A notícia era particularmente marcante, pois muitos acreditavam que os Charrua, que nos tempos pré-coloniais eram o povo indígena dominante na região do Pampa do Rio Grande do Sul e no vizinho Uruguai, estavam extintos desde a primeira metade do século XIX. A matéria veio ilustrada com a imagem de um homem de olhar desafiador, vestido em pele de animal e com lança e boleadeira, além de um outro habilidosamente sobre um cavalo. Todas essas representações não se referiam, contudo, aos Charrua de uma pequena comunidade que vive atualmente na periferia de Porto Alegre.


Apelando a essa identidade étnica diferenciada, tal comunidade vem reivindicando junto ao Estado brasileiro, desde alguns anos, o direito a um território próprio. Mencionando que "cada grupo étnico humano tem mutações genéticas que o distingue dos demais", o foco da reportagem era a pesquisa genética coordenada pela professora Maria Cátira Bortolini, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Logo na frase inicial da matéria deZero Hora lia-se: "Genes de um povo extinto há quase dois séculos ainda podem estar presente em muitos gaúchos - e sem que eles saibam."

Como amplamente conhecido, "Gaúcho", além de ser o termo geralmente usado para se referir à população do Rio Grande do Sul, é também a designação do arquétipo social do homem do campo da região do Pampa e que se tornou uma identidade regional bastante distintiva e representativa do estado.2 A partir de 2001, Bortolini, sua então pós-graduanda Andrea Rita Marrero e outros pesquisadores iniciaram investigações sobre o perfil genético dos Gaúchos. Em suas análises, os geneticistas atribuíram ênfase particular na possibilidade da origem charrua de linhagens maternas identificadas na população que atualmente vive na região pampeana. Tendo entrado frequentemente em conflito com as populações coloniais, os Charrua foram derrotados pelo exército uruguaio em 1831, com a eliminação da maior parte da população. Quatro sobreviventes, incluindo o último chefe (Vaimacá Perú), chegaram a ser levados a Paris e exibidos como curiosidades exóticas, tendo morrido pouco tempo depois (Bracco, 2004; Houot, 2002). "Mas", como concluiu a matéria de Zero Hora, "segundo o trabalho da UFRGS, os charrua e os minuanos3 continuam vivos dentro de muitos gaúchos".

Foram vários anos de pesquisas e uma cuidadosa construção de argumentos antes que os geneticistas se sentissem suficientemente seguros para apresentar suas interpretações através de artigos em revistas acadêmicas. Na terceira e última publicação relativa a essa pesquisa, de 2007, afirmaram: "a herança materna Charrua talvez tenha sido mais importante [no Gaúcho contemporâneo] do que se supunha inicialmente", revelando "uma extraordinária continuidade genética no nível do DNA mitocondrial" (Marrero et al., 2007a, p. 169). Pode-se afirmar que a possibilidade de uma continuidade genética entre os extintos Charrua e os Gaúchos contemporâneos já estava presente como uma hipótese-chave no início da pesquisa. No entanto, como veremos neste trabalho, o argumento assumiu diferentes contornos, a depender de contextos específicos, tendo sido colocado com diferentes graus de certeza.

Do ponto de vista da pesquisa genética, o estabelecimento de uma continuidade se mostrou significativamente mais difícil pela assumida extinção, em época remota, dos Charrua. Tal como indicado por Bortolini em uma entrevista, "eu não tenho parâmetros [...] eu nunca vou saber como eram os Charrua porque eles não existem mais [...] não tenho o povo original para poder comparar".4 Como acessar diretamente as características genéticas dos Charrua não era possível, os pesquisadores tiveram que construir as ligações através do que Bortolini definiu como "inferências indiretas": uma multiplicidade de associações, exclusões e traduções que estabeleceram a continuidade mais como provável do que como definitiva. Nesse processo, os geneticistas lançaram mão de um extenso leque de repertórios para além da biologia, incluindo informações e interpretações das áreas da história e da arqueologia, além de entendimentos sociais acerca da identidade gaúcha.

Em geral, nas pesquisas em genética de populações humanas, inferências e comparações são elementos centrais da prática científica. Afirmações sobre a ancestralidade de determinados indivíduos e comunidades são estabelecidas em comparação com outras populações (Barnes; Dupré, 2008; Cavalli-Sforza; Menozzi; Piazza, 1994; Pritchard et al., 2000). Dados antropológicos, arqueológicos, históricos e linguísticos, bem como o senso comum, são frequentemente acionados, influenciando os rumos das interpretações científicas. Articulações entre repertórios biológicos e sociais, portanto, não são incomuns nas pesquisas em genética de populações humanas (Kent, 2011; Maio; Santos, 2010; Montoya, 2007; Palmie, 2007; Santos; Maio, 2004; Wade, 2007). A propósito, tais articulações não são características exclusivas da genética, mas se fazem presentes nas ciências naturais e nas ciências da vida em geral (cf. Jasanoff, 2004; Latour, 1993; Pálsson, 2007; Rabinow, 1996).

A pesquisa sobre o perfil genético dos Gaúchos, que os geneticistas apontam como parte do campo da "genética histórica" (Marrero et al., 2007a, p. 161), se insere em uma longa tradição de investigação sobre a questão da formação genética das populações brasileiras (cf. Maio; Santos, 2010; Santos; Salzano; Bortolini, 2002; Maio, 2004). Em muitos aspectos, o projeto e as práticas analisadas neste artigo podem ser considerados como representativos da pesquisa genética sobre ancestralidade de populações brasileiras de uma forma mais geral. Não obstante, os pontos aqui analisados levantam, de uma forma particularmente condensada, questões relevantes para se compreender, de uma perspectiva antropológica, a gênese e o desenvolvimento dessas investigações. Diante da presumida extinção biológica dos Charrua, que resultou na impossibilidade de se chegar aos parâmetros genéticos através do estudo de uma população viva, o uso dos saberes de fora do campo da genética teve mais destaque que o usual. Assim sendo, o estudo de caso, através do enfoque nos diferentes estágios da pesquisa, oferece uma oportunidade para explorar as múltiplas traduções e cadeias de articulações entre repertórios de ordem social e biológica (Latour, 1993, 2005).

Desse modo, o objetivo central deste artigo é, com foco em um conjunto de pesquisas sobre ancestralidade biológica, conduzir uma análise acerca das condições de possibilidade sociais e científicas envolvidas na iniciativa de "resgate" genético (ou se poderia dizer, até mesmo, "ressurreição", considerando a ênfase do artigo em Zero Hora) dos Charrua. Isso será feito por meio da análise da vida social da investigação, reconstruindo as fases do projeto de pesquisa desde sua hipótese inicial até sua finalização, incluindo as reverberações na mídia de que "os charruas vivem" na população gaúcha atual.



CLIQUE AQUI, e acesse o artigo completo.


Colaboração: Alan Otto Redü

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