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Quem eram os gaudérios

Paulo Monteiro (*) A palavra gaudério que adquiriu, nas últimas décadas, um sentido que lhe confere certa nobreza, já foi um termo infa...

Paulo Monteiro (*)

A palavra gaudério que adquiriu, nas últimas décadas, um sentido que lhe confere certa nobreza, já foi um termo infamante. Como a própria palavra gaúcho, diga-se a bem da verdade.
José Romaguera da Cunha Corrêa (1863/1910), em seu Vocabulário Sul-Rio-Grandense (1888) assim define gaudério: “adj. – gandulo, parasita; o que, não tendo ocupação, vive à custa de outrem aqui e ali. Cachorro gaudério, é o que não tem dono e vive roubando bocados de alimento aqui e ali”.
E se nós encontrássemos alguém que conheceu e conviveu com os gaudérios históricos, reais, de carne e osso, que existiram no século XVIII? O que ele nos diria? Pois tudo isso é possível.
Alonso Carrió de la Vandera, um espanhol nascido em Gijon, no ano de 1715 e falecido em Lima, no Peru, a 17 de janeiro de 1783, durante um ano e meio viajou, em lombo de mula, de Montevidéu a Lima. Estava acompanhado de Calixto Bustamante Carlos Inca, que entrou para a história com o apelido de Concolorcorvo, isto é, com cor de corvo, moreno. O relatório dessa viagem foi publicado em fins de 1775 ou princípios de 1776, com autoria atribuída a Concolorcorvo.
Alonso Carró de la Vandera usou elementos da literatura picaresca, pseudônimos e deu como de outro o livro que escreveu. Personalidade histórica ainda obscura. O certo é que tinha muitos desafetos. O livro é, de certo modo, um acerto de contas com eles.
Bom, mas isso é uma história que quem desejar conhecer – porque entender é difícil – terá muito o que procurar...
O certo é que ele viu os gaudérios, ao Norte de Montevidéu e nos deixou uma descrição vida e real dos mesmos. A parte Alonso Carrió de la Vandera dedicou àqueles homens do campo transcrevo, a seguir, traduzida de “El Lazarillo de Ciegos Caminantes” (Caracas: Biblioteca Ayacucho, páginas 22 e 23).

GAUDÉRIOS

Estes são uns rapazes nascidos em Montevidéu e nos pagos vizinhos. Roubas de baixo más e piores roupas de cima procuram cobrir-se com um ou dois ponchos, de que fazem cama com os baixeiros do cavalo, servindo-lhes de travesseiro a sela. Provem-se de uma guitarrinha, que aprendem a tocar muito mal e a cantar desentoadamente várias quadras, que estropiam, e muitas que tiram de sua cabeça, que regularmente giram sobre amores. Circulam segundo seu arbítrio por toda a campanha e, com notável complacência daqueles semibárbaros colonos, comem à sua custa e passam as semanas inteiras estendidos sobre um couro, cantando e tocando. Se perdem o cavalo ou se lhes roubam, dão-lhes outro ou tomam da campanha, laçando-se-lhes com um cabresto muito comprido que chamam rosário. Também carregam outro com duas bolas nos extremos, que muitas vezes são de pedra forrada de couro, para que o cavalo se enrede nelas, como também em outras que chamam ramais, porque se compõem de três bolas, com que muitas vezes ferem os cavalos, que não ficam de serviço, considerando esse prejuízo em nada, tanto eles quanto os donos. 
Muitas vezes se reúnem deles, quatro ou cinco, e às vezes mais, com pretexto de irem ao campo se divertir, não levando mais provisão para sua manutenção do que o laço, boleadeiras e uma faca. Se combinam um dia para comer picanha de uma vaca ou novilho: laçam-lhe, derrubam, e, bem amarrados de pés e mão, tiram-lhe vivo toda a rabada com o couro, e, fazendo uns cortes pelo lado da carne, assam mal, e meio cruas, sem mais acompanhamento que um pouco de sal, se lhe levam por prevenção. Outras vezes matam só uma vaca ou novilho para comer o matambre, que é a carne que a rês tem entre as costelas e o pelo. Outras vezes desejam caracus, que são os ossos que tem tutano, os descarnam bem, e lhes colocam de ponta para cima no fogo, até que dêem uma fervidinha e se derreta bem o tutano que revolvem com um palito, e se alimentam daquela admirável sustância; porém o mais prodigioso é vê-los matar uma vaca, tirar-lhe a buchada e todo o sebo, que juntam no ventre, e com uma só brasa de fogo ou um pedaço de esterco seco das vacas prendem fogo naquele sebo e, logo que começa a arder e contatar com a carne gorda e ossos, forma uma extraordinária iluminação, e assim voltam a unir o ventre da vaca, deixando que respire o fogo pela boca e pelo ânus, deixando-a toda uma noite ou uma considerável parte do dia, para que asse bem, e à manhã ou à tarde ou à tarde os gaudérios se acercam e com suas facas vão tirando um pedaço que lhes convém, sem pão nem outro acompanhamento algum, e logo que satisfazem seu apetite abandonam o resto, a exceção de um ou outro que leva um pedaço em seu passeio campestre.
Venham agora a assustar-nos o jornalista de Londres com pedaços de vaca que põe nas mesas do estado. Se ali o maior é de 200 libras, de que coem 200 milordes, aqui se põem 500 só para sete ou oito gaudérios, que uma ou outra vez convidam o dono da vaca ou novilho, e se dá por bem servido. Chega de gaudérios porque já vejo que os senhores caminhantes desejam seguir seu destino para Buenos Aires.”.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS GAUDÉRIOS

O testemunho ocular de Alonso Carrió de La Vandera apresenta alguns fatos que contradizem ou limitam afirmações posteriores de estudiosos da formação do gaúcho.
Nas primeiras linhas – e este é o primeiro fato – afirma que os gaudérios “são uns rapazes nascidos em Montevidéu e nos pagos vizinhos”. Li alhures que os gaudérios eram paulistas e/ou descendentes de paulistas. Não é improvável que homens da Paulicéia hajam se agauderiado ou gerado gaudérios. Este tipo humano, conforme encontrado pelo viajado e experiente espanhol, não eram nem brasileiros, nem argentinos. Eram orientais, uruguaios, nascidos em Montevidéu ou nas suas adjacências.
Eram homens muito malvestidos, extremamente pobres. “Roupas de baixo más e piores roupas de cima procuram cobrir-se com dois ponchos...”. Ora, à leitura dessa passagem vêm aos nossos olhos homens cobrindo a meia parte superior do corpo com um poncho e a meia parte inferior com outro poncho feito chiripá.
Como os seus netos, bisnetos, trinetos e tetranetos de décadas posteriores, faziam cama de baixeiros e a sela (os arreios) de travesseiros.
O segundo fato documentado é que os gaudérios eram nossos primitivos payadores. “Provem-se de uma guitarrinha, que aprendem a tocar muito mal e a cantar ‘desentoadamente’ várias quadras que estropiam, e muitas que tiram da cabeça, que regularmente giram sobre amores”.
Quase duzentos anos depois Arturo Capdevila escreveu sobre a primitiva literatura popular do Pampa, nestes termos: “Os começos literários na chamada época colonial, se tirarmos a oratória sagrada das grandes datas da Igreja, não podem ser mais humildes. Cantares, pequenos romances, versos de ocasião, entretém a vida de família sem alcançar maior ressonância; ou se trata de uma mesma produção que reflete a espanhola, anônima, como caso das advinhas, décimas de devoções ou pequenas sátiras (in Domingo Faustino Sarmiento, Facundo. W. M. Jackson: Buenos Aires, 1945, p. VII). À página seguinte afirma: “Quem fala de Buenos Aires, do mesmo modo se refere a qualquer outra cidade principal da América”.
Cento e poucos anos depois do que Alonso Carrió de la Vandera ouviu e viu ao norte de Montevidéu Simões Lopes Neto recolheu no “Cancioneiro Guasca”, em termos de produção anônima, o mesmo tipo de verso de que nos falam o autor de “El Lazarillo de Ciegos Caminantes” e Arturo Capdevila, ao apresentar “Facundo”. São versos que vemos repetidos (“estropiados”, na expressão de Alonso Carrió de la Vandera), como estes:

A Tirana é mulher velha,
Já não é mais rapariga,
Por isso ela já não quer
Que lhe metam em cantiga.

A Tirana é mulher brava
E mora num faxinal,
Socando sua canjica,
Comendo feijão sem sal.

A Tirana quando olha
P’ra gente, de atravessado,
É sempre muito melhor,
Não s’esperar o recado!...

As “coplas”, quadras, ou trovas, acima, transcritas da página 28 do “Cancioneiro Guasca” (Porto Alegre: Sulina, 1989), mostram lirismo, humor e a velha raiz ibérica, ao usar rapariga, no sentido de “moça”, no melhor Português europeu. Por isso, quem não está acostumado com o estudo profundo e refletido da literatura folclórica da região platina, de certo modo, se assustará com a diferença entre aquela literatura e a gauchesca de nossos dias.
Essa era a autêntica poesia dos primitivos payadores, os gaudérios. Não tinha sido corrompida pelos intelectuais-militares das “guerras pátrias”, fossem contra a Espanha, fossem contra portugueses e brasileiros (e isto é muito importante notar!!!).
Como, apoiado em seleta bibliografia, já escrevi no ensaio “Poesia Gauchesca, um Gênero Escrito com Sangue”, disponível em vários sítios da Internet e em meu livro “O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas”:
“A poesia que retrata a violência de guerras, revoluções e peleias é uma criação de homens cultos, a serviço das tropas coloniais e, logo a seguir, dos caudilhos crioulos; é uma criação de intelectuais urbanos, no estrito sentido da palavra intelectual. E tem até uma data inicial: 15 de outubro de 1877. Exatamente nesse dia, aparece o primeiro poema conhecido que reproduz expressões tipicamente gauchescas e descreve a vida pampiana, escrito pelo padre Juan Baltasar Maziel, advogado e educador santafesino que fazia parte da conquista espanhola da Colônia do Santíssimo Sacramento por D. Pedro de Cevallos (Guilhermino César, Notícia do Rio Grande: Literatura, Instituto Estadual do Livro/Editora da Universidade, Porto Alegre, 1994).
A violência permeia praticamente toda a poesia gauchesca desde os primeiros anos do século XIX. E, recentemente, adquire uma amplitude que não tem limites com as composições musicais. Até o nosso mal interpretado Gaúcho de Passo Fundo (que ‘não dobra esquina quando vê o perigo’ – e sua terrível cacofonia do ‘acuando’) tipifica essa violência. Mas isso já é outro assunto...
Ricardo Rojas, autor de uma clássica História da Literatura Argentina (Ricardo Rojas, Historia de la Literatura Argentin – Los Gauchescos – II, Editorial Guillermo Kraft Limitada, Buenos Aires, 1960, p. 636), assim descreve a consolidação da gauchesca e a substituição da temática lírica em assuntos belicosos:
‘Essa transformação dos payadores líricos em rapsodos épicos se produziu depois de 1810. Antes da guerra com os portugueses (1776) e a guerra com os ingleses (1806) insinuaram o aparecimento da canção e do baile de tema político, porém a nova formação surgiu vigorosa depois da Revolução de Maio, adquiriu forma com Hidalgo (1810-1822), continuou com Ascasubi (1830-1860) e coroou-se com Hernández (1870-1880)’."
São apenas duas considerações. Outras tantas poderiam ser feitas. Deixo de apresentá-las aqui, pois podem ser encontradas ao longo de meus textos disponíveis no sítio do Projeto Passo Fundo.

(O texto acima foi publicado parcialmente às páginas 24 e 24 da Revista Somando, Edição 181 – Ano XVI – Abril/2012).

(*) Paulo Monteiro, poeta e historiador, pertence a diversas entidades culturais do Brasil e do exterior, é autor dos livros “A Trova no Espírito Santo – História e Antonogia”, “Eu resisti também cantando”, “Combates da Revolução Federalista em Passo Fundo”, “O Massacre de Porongos & Outras Histórias Gaúchas” e “A Campanha da Legalidade em Passo Fundo”, que podem ser adquiridos na Loja Virtual do Projeto Passo Fundo. Escreveu e publicou centenas de artigos e ensaios sobre temas literários, culturais e históricos, que estão sendo reeditados em www.projeto passofundo.com.br.

Colaboração: Hilton Araldi

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