Paixão Côrtes, que morreu no dia 27, aos 91 anos, foi um ícone do tradicionalismo Arivaldo Chaves / Agencia RBS Por Jocelito Zalla e...
Paixão Côrtes, que morreu no dia 27, aos 91 anos, foi um ícone do tradicionalismo
Arivaldo Chaves / Agencia RBS
Arivaldo Chaves / Agencia RBS
Por Jocelito Zalla e Luís Augusto Fischer
Doutor em História Social pela UFRJ, professor do Colégio de Aplicação da UFRGS, autor de "Barbosa Lessa e a Invenção das Tradições Gaúchas" (2018); professor do Instituto de Letras da UFRGS, autor de vários estudos sobre literatura gaúcha e editor de "Contos Gauchescos e Lendas do Sul" (2010), de Simões Lopes Neto, e de "Antônio Chimango" (2016), de Amaro Juvenal.
"No fato folclórico, são universais os elementos, são regionais as combinações." A frase do musicólogo argentino Carlos Vega foi citada por João Carlos Paixão Côrtes e Luiz Carlos Barbosa Lessa em seu livro Danças e Andanças da Tradição Gaúcha (1975), versão de divulgação para público mais amplo do trabalho agraciado com a menção honrosa no Concurso Mário de Andrade, da Discoteca Municipal de São Paulo, em 1952. Pode-se dizer que ela sintetiza duplamente a trajetória e o projeto intelectual do recém-falecido folclorista e fundador do movimento tradicionalista gaúcho (e de seu companheiro de primeira hora). Paixão Côrtes de fato transitou entre o local e o universal, alimentando o seu modelo de "tradição" com elementos nacionais, étnico-raciais e sociais variados. Mas sem os preconceitos culturais que vez por outra lhe são atribuídos.
Da mesma forma, se locomoveu com habilidade entre a alta cultura letrada (vide o reconhecimento dos pares eruditos no campo dos estudos folclóricos e na homenagem que recebeu sendo patrono da Feira do Livro de Porto Alegre em 2010) e as manifestações populares a que teve acesso, dominando e traduzindo códigos, linguagens e símbolos. Nesse esforço produtivo, postulou uma síntese para uma população cindida entre modelos de vida tradicional, ligados ao campo, e experiências de urbanização, industrialização e modernização do século 20. Foi um mediador cultural, no mais amplo sentido, inegavelmente inteligente e competente, que deixou marcas incontornáveis na história e na memória do Rio Grande do Sul, pesem as oposições enfrentadas e as necessárias críticas à "gauchidade" que ajudou a defender.
Nascido em Santana do Livramento no ano de 1927, com passagem na infância por Uruguaiana, filho de pai agrônomo e mãe com formação musical, além de ser neto de estancieiro, Côrtes fez desse mundo fronteiriço e de sua herança imaterial um foco profissional e sua missão política. Seguindo os passos do pai, formou-se em Agronomia e se tornou funcionário de carreira da Secretaria de Agricultura do governo estadual, onde desenvolveu e difundiu, durante 40 anos, técnicas de inovação na criação de ovinos. Paralelamente, dedicou-se à renovação do gauchismo cívico, à formalização de tradições gaúchas (tendo em Barbosa Lessa seu grande parceiro, e na dança sua principal frente de ação) e à militância no movimento tradicionalista, do qual foi se afastando nos últimos anos de vida pública, quando teceu críticas ao imobilismo e à patrulha cultural do MTG.
Parte do sucesso do gauchismo teatralizado que foi criado no final dos anos 1940 se deve, justamente, à capacidade de adaptação às exigências do presente. O 35 Centro de Tradições Gaúchas, clube fundado em 1948 por Côrtes, Lessa e outros estudantes do Colégio Júlio de Castilhos que participaram da primeira Ronda Crioula, no ano anterior (o chamado "grupo dos oito"), tornou-se um modelo de fácil reprodução em contextos urbanos, pois não exigia de seus membros o domínio das lidas campeiras ou alguma experiência efetiva com a vida rural, ao contrário dos clubes gaúchos criados pela elite pecuarista na Primeira República. Na estância fictícia dos CTGs, jovens estudantes eram iniciados em tradições recentemente fixadas (ritos, danças e cantos, principalmente), assim como num código de sociabilidade particular, inspirado no universo gauchesco, histórico mas também imaginado, incluindo uma vestimenta oficial, uma linguagem característica e até mesmo uma categoria social inteiramente nova, a "prenda" (termo sem precedentes históricos razoáveis para designar a mulher gaúcha), regulando as formas de conduta e as relações entre seus sócios.
Dessa maneira, filhos das classes médias urbanas também se tornavam divulgadores do movimento nascente e defensores de certa identidade gaúcha para o Rio Grande do Sul em modernização, recorrendo à produção de bens culturais de massa e às mídias mais avançadas do período, como o rádio, a televisão e o cinema. Enquanto Lessa escrevia para a famosa Revista do Globo (ao lado de sua obra autoral, na literatura e na canção) e indicava companheiros para colunas regionalistas nos jornais locais, Paixão Côrtes comandava programas de rádio de sucesso, como os memoráveis Grande Rodeio Coringa e Festança na Querência.
Já aqui, destacava-se na ação de Paixão Côrtes não apenas uma visão aberta de tradição, mas também a constante defesa do popular. Algo relevante para um momento em que os intelectuais mais destacados no Estado, como Moysés Vellinho, se dedicavam à celebração do patrimônio da elite estancieira militar de origem portuguesa. Mesmo no interior do movimento, aliás, havia certa tensão entre distintas compreensões. Na fundação do "35" CTG, um grupo de militares exigia o enfoque no legado farroupilha, no que foi vencido pelo popular-gauchesco de Lessa e Côrtes, que também era mais plural do que o mito do gaúcho heroico tradicional, elitizado e embranquecido na produção dos historiadores e literatos mais próximos do poder político.
Assim, não é exato dizer que o Rio Grande do Sul de Paixão Côrtes contribuiu para o apagamento de memórias divergentes e de sujeitos populares e/ou marginalizados na história local. Nele havia espaço para o contraditório. Em seu projeto, conviviam personagens da elite, como o general Bento Gonçalves, e figuras populares, como o então quase esquecido Sepé Tiaraju, símbolo da resistência indígena e missioneira. Quanto ao patrimônio afro-brasileiro, detalhes significativos, como a inclusão do lundu intitulado "Balaio" no conjunto das "danças gaúchas", não devem ser esquecidos.
E não custa lembrar que Lessa e Paixão Côrtes fizeram suas pesquisas de modo intuitivo, com grande empenho mas sem muita ciência social, em parte porque ela estava ausente no projeto universitário gaúcho de então, ao contrário do que ocorreu em São Paulo, que desde os anos 1930 treinou intelectuais de variadas origens para estudar, registrar, analisar o mundo da cultura popular, como por exemplo ocorreu com o contemporâneo Antonio Candido, cujo doutorado em Sociologia, defendido em 1954, versou sobre aspectos da cultura caipira.
Por fim, ainda que a "prenda" tenha um papel comumente subalterno na dinâmica tradicionalista (a palavra significava "objeto de apreço"), a presença da mulher no novo gauchismo cívico é um importante avanço em relação a experiências anteriores. O major João Cezimbra Jacques, grande idealizador dos grêmios gaúchos na Primeira República, chegou a prever a teatralização de danças e ritos gauchescos, com a necessária participação feminina, a exemplo do crioulismo uruguaio da década de 1890, mas isso nunca chegou a se efetivar em seu tempo. Talvez porque o próprio Jacques fosse avesso à inclusão da mulher no espaço público, reservando a elas, em seus estudos, o papel de genitora e guardiã do lar.
Como em todo projeto romântico de invenção de tradições, a dupla Lessa/Paixão Côrtes incorporou, na crítica ao progresso então rápido e vigoroso, o discurso da necessidade de conservação dos hábitos e costumes em vias de extinção. Tal fato fez com que as fileiras tradicionalistas engrossassem com a adesão de políticos, intelectuais e artistas conservadores. Durante a ditadura militar, a aproximação do movimento com o regime levou à legitimação das demandas da classe latifundiária, principalmente nos embates com trabalhadores rurais sem-terra. Mas é forçado – e anacrônico – dizer que o tradicionalismo de Lessa e Côrtes sempre serviu aos interesses da elite pecuarista. A recuperação da cultura gauchesca chegou a ser vista por ambos, nos anos 1950, como resposta ao êxodo rural e ao empobrecimento do trabalhador no campo, quando também incentivaram a criação de núcleos gratuitos de alfabetização nos CTGs, por exemplo. De outro lado, Côrtes e Lessa sempre destacaram o "caráter dinâmico da cultura", em suas próprias palavras. Apesar da insistência tradicionalista em tomar suas criações coreográficas como manifestação espontânea da cultura popular, os dois costumavam usar o termo "projeção folclórica" para evitar a confusão. Na década de 1980, ambos também se opuseram ao engessamento estético, mostrando que o novo nativismo musical (tendência que previa a inclusão de instrumentos eletrônicos, ritmos de outros países sul-americanos e liberdade criativa) só continuava a fazer o que o gauchismo sempre fizera: inventar tradições.
É certo que a vitória da gauchidade conservadora, produto duradouro da domesticação da cultura popular no governo republicano positivista, ganhou terreno com o movimento tradicionalista. E ainda é necessário descontruir preconceitos sociais, raciais e de gênero no gauchismo como um todo. Por isso, também é importante restituir a complexidade do fenômeno, as disputas que lhe deram origem, as posições perdidas e as pequenas conquistas no domínio do respeito à pluralidade. E Paixão Côrtes pode ser um símbolo dessas conquistas. Por tudo o que apresentou e representou, não pode ser caracterizado como uma figura dogmática. Encenou o seu gaúcho nos palcos do mundo. Excursionou com seu tradicionalismo pelos grandes centros cosmopolitas, como Paris, Londres e Munique.
E é certo que se deixou tocar pelas culturas que conheceu, apesar da fama de "homem grosso" e adepto intransigente do "primitivo". E conseguia até rir dessa (auto)imagem, como comprova a sua participação na proverbial propaganda de café solúvel, em que dizia "Chega de café de chaleira!".
Avaliar a vida e a obra de uma pessoa recém-falecida que tenha tido destaque social forte é já uma tarefa complicada, porque não temos a distância temporal que permite serenidade maior. Mas avaliar vida e obra de uma pessoa assim, que é, ao mesmo tempo, uma literal estátua identitária para milhões de pessoas, bem, isso é certamente um risco. Escolhemos corrê-lo lembrando seu lado mais generoso, comprometido com uma visão “desde baixo” da história, e que pode incentivar novas aberturas à diversidade cultural.
Esse é o legado de Paixão Côrtes que pode liberar a identidade gaúcha de sua tendência de isolamento e de fechamento sobre si.
Fonte: portal GaúchaZH
Nenhum comentário