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Paixão Côrtes e a invenção da tradição, por Mário Maestri

Foto: Guilherme Santos/Sul21 Mário Maestri (*) Morreu hoje, 28 de agosto, aos 91, o folclorista Paixão Côrtes, certamente a figura m...


Foto: Guilherme Santos/Sul21
Mário Maestri (*)

Morreu hoje, 28 de agosto, aos 91, o folclorista Paixão Côrtes, certamente a figura mais forte e representativa do Movimento Tradicionalista Gaúcho, do qual foi destacado fundador, no distante ano de 1947. Era homem singularmente simpático e afável, que deixou lastro indelével na cultura rio-grandense.

Nas décadas seguintes ao fim da II Guerra, com o apoio das autoridades públicas rio-grandenses, com destaque para os anos da ditadura militar, o movimento tradicionalista gaúcho e seus grupos de base, os Centros de Tradição Gaúcha – CTG -, se transformariam no maior movimento cultural organizado do Brasil, que se espraiou através do país, superando suas fronteiras.

Pátria do latifúndio

Paixão Côrtes nasceu em Santana do Livramento, na fronteira com o Uruguai, região dominada fortemente pelo latifúndio pastoril, no passado e ainda hoje. Santana do Livramento é o segundo maior município sulino e o que mais perdeu população na última década, devido à falta de trabalho para sua rarefeita população.

No sul do Brasil, denomina-se de “Campanha” a continuidade de campos de planícies e coxilhas que se estendem da Depressão Central até a Fronteira sul – e seguem adiante no Uruguai e na Argentina. No período colonial e imperial, o Rio Grande foi dominado pelos proprietários das imensas estâncias e charqueadas da Campanha e da Fronteira, umas e outras apoiadas na exploração do trabalhador escravizado.

Tão poderosos eram os estancieiros escravistas do meridião sulino que livraram longa guerra contra o poder central [1835-40], em prol da autonomia e, logo, da secessão da província sulina. Sonhavam unificar, em uma só nação, suas propriedades pastoris-escravistas do sul da província e do norte do Uruguai, onde eram também “senhores de baraço e cutelo”.

Pequena propriedade

A imigração colonial-camponesa alemã [1824], italiana [1875], polonesa, etc., criaram dinâmica que ensejou – fenômeno único no país – o deslocamento do poder da oligarquia agrária, quando da República, em 15 de novembro de 1889, por bloco político-social de viés pró-capitalista, modernizante e autoritário.

O poder político se deslocou da Campanha-Fronteira, na metade sul, para sobretudo a Depressão Central e a Serra, na metade norte, regiões que já superavam economicamente o Meridião nos anos finais do Império. Esse movimento, que singularizou por décadas o RS, foi dirigido pelos republicanos positivistas e seus  principais líderes: Júlio de Castilho, Borges de Medeiros, Flores da Cunha e Getúlio Vargas.

O latifúndio não entregou o poder de “mão beijada”. Em 1893-5, assaltou militarmente o novo poder, causando a mais sangrenta guerra civil do sul do país.  Em 1923, o latifúndio pré-capitalista fracassou novamente em movimento armado que, nesse momento, reivindicava apenas uma maior partição no poder, pois estava consciente do menor dinamismo econômico e político diante da nova pró-capitalista.

Hegemonia industrialista

Em 1937, o golpe do Estado Novo liquidou o federalismo nacional;  fechou os partidos políticos, entre elas o Libertador, dos latifundiário sulinos; impulsionou fortemente o industrialismo, no Rio de Janeiro e São Paulo. Apesar de promover forte transferência de renda do campo para a indústria, Vargas jamais atacou o latifúndio, uma das razões da crise do padrão de “desenvolvimentismo burguês assentado nos capitais e mercados internos” por ele impulsionado.

Quando da deposição de Vargas, em 1945, o Brasil se modificara fortemente. A indústria dominava a nação e a classe operária se fortalecera. O latifúndio tornara-se mero apêndice político do projeto imperialista de destruição da “indústria nacional autônoma” getulista. A União Democrática Nacional nasceu como representação do conservadorismo e a reorganização saudosista do Partido Libertador restringiu-se à Campanha e à Fronteira sulina.

Entretanto, a ofensiva cultural  do latifúndio  riograndense teve indiscutível sucesso, enquanto fracassava redondamente sua reorganização política autônoma. O movimento tradicionalista nasceu propondo o latifúndio pastoril como cadinho das mais límpidas e gloriosas virtudes da população rio-grandense como um todo.

Civilização e Barbárie

Nas suas origens, desconhecendo a história rio-grandense, o tradicionalismo sulino empreendeu invenção de tradição apologética e conservadora, fortemente apoiada em ideologia cultural platina congênere, anterior e de maior riqueza, devido ao dinamismo superior – econômico, social e político – da economia e sociedade pastoril uruguaia e, sobretudo, argentina.

O tradicionalismo sulino assenta-se na proposta de sociedade apoiada  em produção que literalmente não exigia trabalho [“produção sem trabalho”], o que permitiria relações fraternas entre fazendeiros e peões, companheiros nas atividades lúdicas pastoris [“democracia pastoril”] e nos mesmos ideais.  Teses apologéticas celebrizadas em Facundo, Civilização e Barbárie, por Domingo Sarmiento (1810-1888), que literalmente odiava os gauchos argentinos.

O sucesso tradicionalista consolidou-se com a construção de locus de encenação de sua narrativa mitificada – os Centros de Tradição Gaúcha. Neles, os tradicionalistas realizam encenação romântica da estância pastoril, de diversas  modalidades, onde o fazendeiro (“patrão”) fraterniza e comunga com o “capataz”, os “sota-capatazes”, os “peões” e, finalmente, as “chinas”, na reconstrução desse mundo idílico sem explorados e exploradores.

Limpeza étnica

A transposição das elucubrações ideológicas pastoris platinas ao Rio Grande do Sul exigiu uma violentação maior no relativo ao nosso passado.  Ao contrario da da Banda Oriental, de Santa Fé, de Corrientes, de Entre Ríos, etc., a economia pastoril sulina não se apoiou sobremaneira no peão, mas principalmente em trabalhadores escravizados – os “cativos campeiros”.

Até praticamente a Abolição, o Rio Grande foi sempre terra de cativos, não de gaúchos. Uma fazenda sulina apoiada sobretudo no trabalhador escravizado opunha-se cabalmente à proposta fantasiosa da “democracia pastoril” e de “produção sem trabalho” [sem esforço e sem oposição social]. Como introduzir na fazenda romantizada dos CTG o cativo, o tronco, a palmatória, o suor do negro escravizado? Para manter as propostas fantasiosas de passado latifundiário e pastoril sem contradições sociais, a escravidão sulina, uma das mais perenes e consistentes do nosso país, foi ignorada e desconhecida, em uma verdadeira limpeza étnica do passado.

Para tal, o “cativo campeiro” foi negado, cedendo lugar a um “peão-gaúcho” reconstruído à imagem e semelhança de seu antípoda social – o “fazendeiro”.  Essa metamorfose do cativo campeiro em gaúcho idealizado, e deste último em fazendeiro,  materializou-se na bela estátua “O Laçador”, de 1958, de Antônio Caringi, que teve como modelo precisamente Paixão Cortes, engenheiro-agrônomo, nas vestes de fazendeiro travestido em gaúcho.

Representação viva do tradicionalismo

Paixão Côrtes, um belo homem, quando jovem e em idade avançada, de abundante bigode e cabelos longos,  literalmente incorporou seu personagem, vivendo como uma espécie de gaúcho da fronteira, renascido nos nossos dias. Foi líder paradigmático dessa construção da tradição que, cada vez mais afastada e contra a realidade histórica, inventou indumentárias, danças, canções, músicas, etc. Nesse processo, até mesmo palavras inexistentes de um linguajar gaúcho foram inventadas.

A reconstrução de um passado pastoril que saltou barreiras sociais, geográficas e históricas inarredáveis e propôs o fazendeiro-gaúcho imaginado como personagem quase único do passado sulino.  Lançou para as sombras do desconhecimento a história dos trabalhadores escravizados, dos povos autóctones, do imigrante colonial-camponês e, sobretudo, dos trabalhadores rurais e industriais sulinos contemporâneos.

A grande razão do sucesso do movimento tradicionalista se deve ao fato de que, praticamente desde sua origem, superada sem retorno a proposta de hegemonia pastoril regional, o MTG foi perfilhado gostosamente por todas as facções das classes dominantes sulinas, com destaque para as industriais hegemônicas, devido à sua proposta socialmente apaziguadora, da existência no passado de um sociedade em que o lobo bebia ao lado do cordeiro, em que o explorador andava de braços dados com o explorado.

(*) Mário Maestri, historiador, é autor de, entre outros, Uma breve história do Rio Grande do Sul: da pré-história aos dias atuais. 404 p 


Fonte: portal Sul21

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