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Chimarrão sem fronteiras: como o costume viajou para o Líbano, Síria e Rússia

A libanesa Lina Aboughanem mora em Michigan e tem uma coleção de apetrechos para o chimarrão | Foto: Arquivo Pessoa / CP Depois da che...


A libanesa Lina Aboughanem mora em Michigan e tem uma coleção de apetrechos para o chimarrão | Foto: Arquivo Pessoa / CP


Depois da chegada das seleções argentina e uruguaia com centenas de quilos de erva-mate na Copa do Mundo da Rússia, nosso querido chimarrão virou assunto no mundo todo. Até o jornal britânico The Guardian publicou um passo a passo de como preparar o amargo, já que alguns dos jogadores da seleção da Inglaterra aderiram ao costume, graças ao técnico do Tottenham Hotspur, Mauricio Pochettino, que é argentino e acabou “viciando” alguns de seus jogadores.

No Brasil, carregar a bebida já entrega as origens. Mas, apesar de ser bem conhecido no sul da América do Sul, na maior parte do globo o mate ainda é motivo de curiosidade. Como preparar?,‘E o canudo, se compartilha?, Não está muito calor para ficar bebendo essa água quente?, Pode colocar açúcar?, são algumas das perguntas ouvidas pelos gaúchos e adeptos da bebida. Porém, o que alguns amantes do mate podem nem imaginar é que, em terras longínquas, tem gente que entende da bebida tanto quanto eles. Terras em que os índios guaranis, pioneiros do costume, nunca pensariam em chegar: Líbano, Síria e Rússia.

Na mala dos drusos

A bebida foi parar no Oriente Médio no século XIX, por meio da comunidade drusa, que hoje em dia se concentra principalmente nas montanhas de Síria e Líbano. Depois da Primeira Guerra Mundial, a região onde drusos habitavam ficou sob o comando francês e britânico. Vivendo em constante conflito, uma parte significativa da população migrou para a América do Sul e boa parte foi para a Argentina.

Depois do fim do conflito, sírios e libaneses fizeram o caminho de volta para casa, trazendo a erva-mate na mala e incorporando a tradição do chimarrão à vida nas montanhas no Oriente Médio. “Meu tio avô viajou para a Argentina na época do mandato francês. Antes dele voltar, já mandava erva-mate para os meus avós aqui.

Muitas outras famílias drusas viajaram para a Argentina e eles foram os principais responsáveis por transformar o mate em uma bebida oficial da nossa comunidade”, afirma Salah Abdul Baki, 29, gerente de marketing em Beirute, que também diz ser reconhecido pela companhia de sua cuia. “Sempre que eu bebo mate em algum outro lugar do Líbano, as pessoas sabem que eu sou druso”, reconhece.

'Tão importante quanto o telefone'

O tipo de mate consumido no Líbano e na Síria é similar ao argentino, a erva mais curtida fica mais seca e menos verde. Porém, a tradição e o ritual em torno da bebida é bastante próxima da maneira gaúcha. O chimarrão é tomado em grupo, senta-se em círculo e a cuia, chamada de Qaara na língua local libanesa, é sempre passada pela direita. “Tem um ditado druso que diz: nem que um herói esteja sentado à sua esquerda o mate vai para aquele lado”, compartilha Salim Azzam, design e storyteller libanês, que incorporou a figura do mate em seus trabalhos por causa da carga cultural da bebida.

“Se você vai para uma casa nas montanhas do Líbano e eles não te servem mate, não estão te recebendo bem”, explica o rapaz, que dedica a escolha de sua profissão ao costume de tomar mate. “Dividir o mate põe você em estado aberto ao diálogo, parte da minha habilidade para a comunicação veio disso. É bonito ver como uma coisa pequena é capaz de trazer tanta gente junta e prestando atenção uma nas outras. Para o povo da montanha, o mate é tão importante quanto o telefone” , afirma Salim.

O jovem designer trabalha buscando a valorização das mulheres da região e a inserção delas no mercado de trabalho desenvolvendo oficinas de técnicas de bordado antigas no Líbano. Salim se denomina, antes de tudo, um contador de histórias que dão vida às figuras de mate, chaleiras, bombas e cuias nos artigos que suas alunas produzem.

Aleto para imigrante

Nour Halabi, 30, nasceu em Damasco, na Síria, e há cinco anos vive na Pensilvânia. PhD em Comunicação pela Universidade da Pensilvânia e pesquisadora da identidade Síria, Nour afirma que os chás são levados para outros lugares pelo povo Sírio porque fazem parte da construção de comunidades. “Quando eu tenho uma conversa, preciso estar bebendo alguma coisa. Conversas seguras são acompanhadas por uma bebida segura. Por isso, sírios seguem tomando chás mesmo quando deixam o país, faz parte de quem somos.

Não é de se admirar que o mate tenha sido incorporado à rotina síria depois da migração para a Argentina.” A pesquisadora vai além, e enxerga o mate como aliado de exilados e imigrantes forçados. “Essas pessoas viveram traumas, não escolheram a mudança, não se preparam para ela. Consumir alimentos ou bebidas de seu país de origem no novo espaço ajuda a construir uma nova identidade partindo de um ‘antigo eu’ que eles ainda conseguem acessar”, explica.

Lina Aboughanem, 42, libanesa, vive em Michigan há 14 anos e é exemplo de como o mate pode ajudar a reconstruir um lar longe de casa. Lina também tem sorte, já que Michigan é a maior comunidade do Oriente Médio nos Estados Unidos e ela tem acesso à erva-mate em vários mercados. “Compro num bem próximo da minha casa, mas por aqui você encontra em qualquer mercado libanês. Mate me dá conforto, me sinto bem quando tomo, me ajuda muito a relaxar, por isso eu tomo todos os dias”, comenta.

Seguindo o ritual libanês, Lina também compartilha o chimarrão com as amigas em solo americano. “É uma bebida que você só toma com pessoas bem íntimas porque você compartilha o canudo. Aqui em Michigan eu recebo minhas amigas uma vez por semana e não sirvo café, é sempre mate.” Diferente da cultura Síria, em que cada um tem sua própria cuia e bomba e compartilham a água, os libaneses compartilham o mesmo mate, mas passam limão na bomba como uma medida de higienização.

Brasileiros morando fora, também fazem do mate um aliado na hora da saudade. Pamela Jacobus, 26, natural de Novo Hamburgo, mora em Hamburgo, na Alemanha, há 5 anos e garante que o chimarrão foi a principal preocupação na hora da mudança. “Com pouco espaço nas malas, fiz questão de deixar coisas para trás para trazer 12 quilos de erva.” Sacrifício que, segundo ela, valeu a pena: “É fundamental no meu dia a dia. O mate é minha companhia, me sinto menos sozinha e mais perto de casa.” Quando divide o mate com amigos em parques na cidade, Pamela chama atenção dos locais. “Ficam encantados pela cuia e pelo ritual de tomar dividindo o mesmo recipiente, ir passando de mão em mão. Uns experimentam e até gostam, outros acham nojento dividir a mesma bomba”, comenta.

Pelo mundo e pelas redes

Foram as paradas de curiosos em Portugal, Itália e até na NASA que inspiraram Alexandre Chaves, 38, a criar a conta @chimarreando_pelo_mundo no Instagram. Alexandre garante que nesses três anos de página, tem tido interações inusitadas com estrangeiros. “O mais interessante são essas pessoas que nunca falaram uma palavra em português e começaram a ter o hábito, me perguntam onde comprar, como fazer”, comemora o gaúcho de Dom Pedrito, fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. “O mais interessado foi o Boris, da Rússia. Desde o início ele queria aprender, eu mandava vídeos para ele de como fazer o mate. Cada tentativa que ele fazia me mandava foto, me pedia dicas de boas ervas, nós conversávamos em inglês e ele deu um jeito de aprender.”

Quem dá uma olhada na conta de Instagram de Boris Zamaryonkov, pode confirmar que ele aprendeu direitinho. O russo, natural de Moscou, experimentou a bebida quando estava visitando um amigo especialista em chás. “Nós passamos a noite inteira bebendo mate porque esse meu amigo é muito interessado em chás de outras partes do mundo. Eu me apaixonei pelo gosto e para mim parecia que eu conhecia mate desde minha infância”, confessa.

Boris gosta mesmo do chimarrão brasileiro, mas conta que é difícil encontrá-lo em Moscou. “Temos muitas casas de chá, mas você só encontra algumas poucas ervas argentinas e paraguaias. Não é todo mundo que gosta da erva brasileira e está ficando cada vez mais caro comprar daqui”, reclama Boris, que também já passou por alguns preconceitos carregando seu chimarrão pelas ruas de Moscou. “Muitas pessoas perguntam se é de fumar e pedem para experimentar. Mas eu já estou acostumado e calmamente explico do que se trata”, diverte-se.

Mate na cidade do Kremelin

Engana-se quem pensa que o passeio do chimarrão por terras russas depende apenas de curiosos como Boris. Moscou conta com um Mate Club, idealizado por Amjad Greyzi, 27, filho de pai libanês e mãe russa. O Club abriga uma organização sem fins lucrativos, financiada pelo governo de Moscou para promover a cultura de beber mate no país.

Para aumentar a surpresa, o consumo de mate é relacionado à experiências esotéricas. É que os russos misturam mate, citações de Che Guevara, Júlio Cortázar e filosofia maia. “Você terá excelente oportunidade de ter uma bebida selecionada de acordo com seu signo solar. Além disso, terá a oportunidade de ver e usar suas habilidades intuitivas e o mate o ajudará a se concentrar em sua Mente Universal”, é o que promete o site do estabelecimento (www.club-mate.ru/eng/ ).
No cardápio de drinks, mate com flores, com leite, com outros chás. Todos com alguma função, seja para o corpo ou a mente: mate com tangerina para diminuir a ansiedade, mate siciliano para facilitar a meditação, o mate de sálvia é anti-inflamatório e o da cobra vermelha lida com questões da sexualidade. São mais de 70 tipos de chimarrão.

Na parte do site destinada a formas de consumo, uma foto de Fernanda Lima ilustra a explicação. Lendas e mitos brasileiros também estão presentes no dia a dia do Club. Tatiana Sorokina, diretora de performance na startup Nimb, frequenta o clube desde 2016, quando foi convidada por um amigo. “Foi amor à primeira vista”, garante a russa. Segundo ela, o lugar é frequentado por poucas pessoas, já que os donos não fazem nenhum tipo de propaganda. “É um lugar mais secreto, os visitantes são excêntricos, desde homens de negócios muito ricos, até celebridades. Alguns visitam por causa dos cartomantes, outros pelas aulas de yoga e meditação”, comenta Tatiana.


Fonte: jornal Correio do Povo
Para ver a publicação original, clique aqui.

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