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O discurso da tradição como combustível para o fascismo, por Dilermando Cattaneo

“Ethos gauchesco vangloria a violência e a repressão como constituintes de uma suposta cultura gaúcha”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21) ...

“Ethos gauchesco vangloria a violência e a repressão como constituintes de uma suposta cultura gaúcha”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Dilermando Cattaneo (*)

As fotos dos ataques de ruralistas aos militantes que participam da caravana do Lula essa semana, aqui no Rio Grande do Sul, não mostram apenas a intensificação dos conflitos de classe entre latifundiários/proprietários versus camponeses/assalariados, como uma análise menos complexa poderia supor. Para além do possível ressurgimento da UDR e sua agenda de violência para com os/as pobres do campo em “defesa da propriedade”, os eventos dessa semana em Bagé e Santa Maria, sobretudo, mostram o quanto a dimensão identitária-cultural atravessa e se interpenetra nos conflitos sócio-político-espaciais.

Há que se atentar para o fato de que os grandes proprietários rurais da Campanha Gaúcha se identificam mais como “estancieiros” do que como “fazendeiros” ou “ruralistas”, e não necessariamente se filiam cegamente ao discurso do agronegócio voltado às exportações de commodities – notadamente da soja no Cerrado, como também se diferenciam dos exploradores da cana-de-açúcar no Sudeste e Nordeste e dos madeireiros da Amazônia. Essa elite aristocrática composta pelos estancieiros da metade sul do RS já há algumas décadas é decadente do ponto de vista econômico, mas sempre se arvorou como “proprietária” do suposto legado cultural que, em alguma medida, subsidia o discurso do “tradicionalismo” gaúcho.

Caberia também aqui uma análise sobre as diferenças histórico-geográficas da formação territorial desses dois “Rios Grandes do Sul”: o da metade norte colonial/empresarial e o da metade sul campeira/pastoril, e suas diferentes reverberações espaciais e regionais, incluindo o modo como o agronegócio e os discursos regionalistas se instalam nessas diferentes porções do espaço sul-riograndense, mas essa análise deixamos para outro momento.

A questão fundamental que trago aqui é o perigo do discurso tradicionalista (e sua apropriação tacanha das diferentes manifestações culturais regionais, como o Nativismo, por exemplo – mas isso também deixo para outra análise) na repressão às manifestações políticas do campo da esquerda. A foto de um “gaudério” pilchado “dando de relho no lombo” de um simpatizante da caravana do Lula traduz muito desse “ethos” gauchesco que vangloria a violência e a repressão como constituintes de uma suposta “cultura gaúcha”.

Como se não bastasse o movimento tradicionalista e a grande mídia ao longo das últimas décadas terem “culturalizado” aquilo que em si é político: a existência do latifúndio e a dominação no campo – como se fosse “natural” haver peões que servem ao seu “patrão” estancieiro (qualquer semelhança com o nome que se dá ao líder do CTG não é mera coincidência) -, agora ainda por cima vinculam esse postulado das supostas “façanhas” à violência e repressão – que sempre existiram, diga-se – contra quem pensa e/ou se posiciona diferente.

O bairrismo exacerbado é primo-irmão do fascismo. Não é de hoje que as posturas “separatistas” demonstram toda a xenofobia, o machismo e o racismo que, até a pouco, estavam apenas implícitos nos discursos e ideias de quem apoia essa bizarrice. Está mais do que na hora de denunciarmos essas posturas e exigirmos, por exemplo, o fim da reprodução do hino rio-grandense e seu racismo evidente (“povo que não tem virtude acaba por ser escravo” (sic)), além de diferenciarmos manifestações culturais de “tradições” inventadas e padronizadas. Os vários vídeos de gaúchos “respondendo” às críticas do Agnaldo Timóteo só demonstram que a Revolução Farroupilha jamais poderá ser compreendida como um movimento de fato revolucionário e promovida pelos de baixo, como a Cabanagem, por exemplo.

Essa aliança dos de cima em torno de práticas e discursos fascistas não tenta sufocar apenas a caravana do Lula. Tal e qual no século XIX (que garantiu a extensão territorial do Brasil como conhecemos hoje) e ao longo do século XX, essas alianças buscam silenciar, na base da violência, uma possível e desejável aliança, desde baixo e à esquerda, entre classe, raça, gênero, etnia, comunidade e identidade.

(*) Professor do Curso de Geografia-Licenciatura da UFRGS/Litoral Norte


Fonte: portal Sul21

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