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Shana Müller: “O machismo não pode ser perpetuado no tradicionalismo”

Shana Müller chutou o pau da barraca. Ou do galpão, no caso. Em um texto publicado no site do programa Galpão Crioulo, da RBS TV, nest...


Shana Müller chutou o pau da barraca. Ou do galpão, no caso.

Em um texto publicado no site do programa Galpão Crioulo, da RBS TV, neste final de semana, a apresentadora questionou a representação da mulher na música tradicionalista. O título é deveras autoexplicativo: “Não sou china, nem égua, nem quero que o velho goste”.

A reflexão de Shana parte de um dos refrãos mais populares e repetidos do cancioneiro gaúcho. Célebre, curiosamente, na voz de uma mulher (Berenice Azambuja):

“Não precisamos ir longe. Quem de nós já não ouviu e/ou cantou junto ‘churrasco, bom chimarrão, fandango, trago e mulher. É disso que o velho gosta, é isso que o velho quer!’ Ahãm. Bem isso: essas ‘coisas’ quer o velho. Mas a gente não é coisa, a gente é gente”, escreve Shana.

Apresentadora cita trechos mais pesados de outras canções, como “ajoelha e chora, quanto mais eu passo o laço, muito mais ela me adora”, antes de concluir:

“A gente alimenta, incentiva, encoraja as situações de violência, de preconceito, de maus-tratos contra as mulheres. E isso está todos os dias na nossa vida e a gente não percebe. A cada nove segundos uma mulher é violentada e música, sim, comprovadamente, incentiva isso. E pior: massifica o pensamento comum de que a mulher é menos, é coisa, é bicho!”

Após mais de 5,4 mil reações e de 1 mil compartilhamentos em sua página no Facebook, a apresentadora avaliou a repercussão:

– Um pouco surpreendente até, eu diria. Recebi, inclusive, bastante reações de mulheres se posicionando contra o que eu disse. Dizendo que a tradição não tem esse intuito, ou que nunca se sentiram ofendidas. Ninguém é obrigado a concordar comigo. São coisas que eu mesma estou repensando. Que tantas vezes eu cantarolei antes de refletir sobre o que eu estava dizendo. Uns me mandaram ir criticar letras de funk. Ora, eu não trabalho com funk – declara Shana.

Em sua reflexão, Shana cita um texto de 2014 da violinista e etnomusicóloga bajeense Clarissa Ferreira, chamado “Nem chinoca, nem flor, nem morocha: sobre o machismo e a música gauchesca”, publicado no blog Gauchismo Líquido. Nele, Clarissa cita um artigo científico que analisou 80 letras nativistas e as classificou em sete categorias conforme a representação da mulher. A mais numerosa, com 27 letras, era a que a mulher aparecia “coisificada”. Ou seja, comparada a um objeto a ser admirado, a um instrumento a ser tocado ou mesmo a um animal a ser domado ou consumido como carne.

– O texto da Shana é uma revolução. A revolução está em fazer as pessoas começarem a pensar sobre o assunto. Tanto os espectadores quanto os artistas precisam ter a consciência do que estão cantando e ouvindo. Querendo ou não assumir esse papel, o artista é um agente político. A partir dessa reflexão, ele vai decidir se vai continuar cantando. Mas a reflexão já é um passo adiante – elogia Clarissa, contente com o número crescente de meninas em trajes nativistas curtindo sua página no Facebook (Gauchismo Líquido) desde a publicação do texto.

Seguir ou não cantando músicas misóginas, machistas, racistas, homofóbicas ou de qualquer forma desconfortáveis a algum segmento social é um debate recorrente. Esteve presente, por exemplo, no carnaval passado, quando marchinhas tradicionais como Cabeleira do Zezé foram deliberadamente excluídas de alguns blocos de rua. Algo que o professor de canção do Instituto de Letras da UFRGS, Guto Leite, admite ser uma “questão espinhosa”:

– Em primeiro lugar quero deixar claro que sou Shana Futebol Clube nessa questão, e que as mulheres têm todo o direito de dizer “nós não aceitamos que vocês cantem mais isso para nós.” Em casos muito radicais de ofensa, não acho absurdo banir uma música de um repertório. Porém, é preciso lembrar que a arte é o espaço do contraditório. Às vezes, silenciando a arte, se silencia o lugar em que o debate floresce, nesse caso sobre a violência e o machismo – avalia Guto.

O professor cita como exemplo uma polêmica da década de 1970, quando Gilberto Gil deixou plateias de cabelos em pé ao regravar a canção Minha Nega na Janela. Em um dos seus trechos mais escabrosos, a letra diz: “Olhei pra ela e disse: ‘Vai pra cozinha’. Dei um murro nela e joguei dentro da pia. Quem foi que disse que essa nega não cabia?”.

– Um cara como ele, autor de letras lindas como Super-Homem, cantar aquele horror era incompreensível para algumas pessoas. Mas o argumento era que ele cantando aquilo servia como um protesto. Era mostrar para todo mundo que aquele tipo de atitude existia, não podia ser silenciada – conta Guto.

No caso da polêmica de Shana Müller, a artista acredita estar passando por uma fase de avaliação crítica do seu repertório. Às vezes a um custo alto. Preferiu, por exemplo, deixar de fora dos próximos shows um clássico – Cevando o Amargo, de Lupicínio Rodrigues – porque não julga ser um bom momento de cantar o termo “chinoca”. Todavia, a artista esclarece que a motivação para escrever o texto não foi um acerto de contas com o passado, mas sim uma preocupação com o presente e com o futuro da música regionalista.

– As pessoas acham que a ideia daquele texto veio do caso José Mayer. Não foi. Veio ao assistir a gravação de um programa em que uma banda jovem nativista estava reproduzindo aquela velha representação da mulher como coisa. Então há uma diferença entre algo que é parte da História, como uma letra machista do passado, e algo que não pode ser perpetuado nela, que é essa visão de mundo sobre a mulher. O tradicionalismo não é intocável – declara Shana.


Por Shana Müller
Fonte: Coluna Donna do jornal Zero Hora

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